quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Resenha: Ancestralidades



























Título: Ancestralidades
Autor: Vários
Editora: Venas Abiertas
Ano de publicação no Brasil: 2019
Número de páginas: 198
Onde encontrar: Skoob
Nota: 5 / 5


Ancestralidades é uma coletânea de contos e poesias com participação de 22 homens negros, publicado pela Venas Abiertas, a mesma editora que publicou o Raízes, que reúne 20 mulheres negras. Como é uma coletânea de homens negros, é óbvio que racismo vai ser o tema principal, e isso vai ser abordado de várias formas. Mas vai pra além disso também: fala sobre a vida na periferia.

Não vou conseguir falar muito sobre cada autor, apenas vou destacar alguns trechos que gostei, e comentar sobre eles. Começando com Bim Oyoko, a citação estará abaixo. Começando com o tema: violência policial ligada ao racismo. Todo mundo sabe que a polícia, a instituição, em todos os lugares do mundo, é racista. E assim, é algo realmente presente. Nos livros da Chimamanda, Nigeriana, você vê violência policial com pessoas de pele retinta.
"Não é que sejam todos canalhas, maspara os guetos, sirenes e fardas são sempre ameaça"


E é um tema que outros escritores, como Bruno Cardoso Mattos também trabalha em suas poesias. Quando mais escuro você for, mais duro será o racismo com você. Eu como pessoa negra de pele clara sei que o que eu passo não é nada em comparação ao que negros retintos passam todos os dias. Mas também sei que o racismo institucional mata desde o negro claro até o retinto.
"Para o dicionário,causaé uma razão ou um motivo que explica ou justifica um ato, acontecimento ou ação.A causa daquela morte foi a cor"


Carlos Melo também fala sobre isso, mas focando não somente no ato de matar/morrer, mas na dor que há por trás disso, e principalmente no medo que isso gera. O medo de sair à noite e não voltar pra casa. O medo de simplesmente ir na padaria, no fim da tarde, e não voltar nunca mais. E por causa desse medo, tem muita gente que desenvolve síndrome do pânico. Agora pensa, em quão ruim, cruel é o racismo, pra que faça com que a gente tenha medo de existir.
"Preta é a cor da favela,Na peleNa veste,E no saco, onde mais um irmão foi levado.O vermelho sangue também faz parte,Ele tá na calçada, no campo, mas também no asfalto.Na madrugada ando nas ruas de mãos para o alto,por que tenho medo do fardado noiado me fazermais um dos executados"


Eu amei o conto de Duan Kissonde. Eu não esperava gostar tanto de um conto assim, mas o autor desenvolveu o conto de uma forma tão boa, mesmo acontecendo coisas não muito agradáveis, flui de uma maneira tão gostosa. É aquele conto bem escrito que dá vontade de recomendar pra todo mundo, e é bem coisa do cotidiano.
"Augusto atravessou correndo. Sinal vermelho. Achou que dava tempo. Não dava mais"


Evanilton Gonçalves escreveu a citação que com certeza engloba todos os escritores. E pessoas que gostam de "viajar na maionese" no geral. Quem nunca ficou olhando pra uma pessoa e inventando toda uma história complexa do motivo de ela estar ali? Ou nunca se apaixonou no ônibus e começou a inventar seu futuro com aquela pessoa, mesmo não sabendo nem o nome dela? Essa citação aqueceu meu coração, quando li. Ele também é contista.
"Gosto de observar o passar das horas e das pessoas ao meu redor e o que não consigo ver, invento"


Felipe Nikito escreveu algo que me impactou profundamente. Acho que se você é um cristão consciente, em algum momento você já pensou nisso, mas a verdade é que muitos líderes religiosos não pregam o amor, e muitos pregam a intolerância. E é importante falar isso. Até dentro do cristianismo tem muita intolerância, e às vezes dentro da mesma religião, apenas por que são congregações diferentes, também tem intolerância rolando.
"Jesus Cristo ensinou,mas tem até uns pastor que não assimilouQue pra mudar esse mundosó mesmo com amorMuito amor"


E temos então Fellipe Beluca, falando muito da periferia. Ele é de um lugar que fica perto de onde eu moro, e eu acho tão gostoso ler poesia de quem tá perto de mim, por que a identificação acaba sendo maior. Ele participa de batalha de MCs então também é algo que tá sempre nas poesias dele, e que eu acho muito legal. Amo batalha de MCs, confesso que vou em poucas por que infelizmente o ambiente (maconha, bebida etc) em si não é do meu agrado, mas sempre que é pra prestigiar gente que conheço eu tento ir.
"MCs se matando em letras, meus manosmorrendo em tretas"


Franco Vandereste fala novamente da matança de gente preta. E principalmente da matança que vem pelo ódio. Vi numa entrevista da Clarice Lispector, que você pode ver clicando aqui, que se um tiro apenas já basta para matar, todos os tiros que vêm depois são pelo ódio. Agora para pra pensar, por que as pessoas são ensinadas a odiar gente preta? É simplesmente desumano o que o racismo faz.
"Na rua eu vejo o ódio no olho de genteque mata a gente com olho antes de matar com o pente"


Igor Chico escreve de uma forma tão poética, linda, sensível. Cada frase daria uma linda tatuagem. É algo bem intimista, e não necessariamente sobre negritude, mas passa sim por esse tema. Eu não consigo nem descrever o quão gostosa é a escrita dele, mas deixo aqui um trecho simplesmente lindo pra vocês apreciarem essa obra de arte.
"aceitar que há mais buracos em mimdo que na camada de ozônio"


Jessé Cabral fala sobre a vida dele, e claro que isso envolve ser um homem negro, mas também é algo mais pessoal. Ele não está falando do coletivo, ele está falando de experiências que ele viveu estando dentro desse belíssimo coletivo que é a negritude.
"Nem em mim cabem tudo que vi existir"


E depois vem Jô Pinto, que é o mais diferente do livro, e talvez até destoe um pouco do resto. Isso por que a vivência dele é muito diferente, já que ele viveu/vive numa reserva quilombola. É muito interessante ter tantos pontos de vista dentro do livro, e ele trás um viés bem religioso sobre a negritude, pelo ponto de vista cristão católico. Eu gostei por que mostra a devoção que cada pessoa tem o direito de ter sobre qualquer santo, seja ele o santo da igreja católica ou o santo do candomblé, ou até mesmo os dois.
"Rainha dos homens pretos!Mãe, mãezinha, "Senhora do RosárioSua casa cheira, cheira cravoe flor de laranjeira"


José Falero fala do submundo que é a periferia. Geralmente os lugares chamados de submundo são lugares onde as pessoas marginalizadas estão, e tentam sobreviver de alguma forma. O que é a descrição do que acontece na favela. E claro, playboy nenhum sobreviveria uma semana na favela. Pressão demais pra quem não é criado nela.
"As nossas grandes cidades também possuem profundezas onde nem todos conseguem ir, porque não aguentariam a pressão. Essas profundezas são conhecidas como 'periferias'"


Kadosh Miranda falou de coisas que me emocionaram. Falou de natureza. Para quem não sabe, religiões afro-brasileiras prestam culto à natureza, orientados por espíritos, então ler sobre a natureza dessa forma, e enfatizando que isso sim está matando muito mais do que nós humanos, que tá matando os animais e as plantas, e que esses elementos são coisas sagradas, pra mim não tem preço. Quero deixar linkado aqui o vídeo que Pérola D'Iemanjá fez sobre a poluição do mar, e sobre como nós também somos responsáveis por isso. Claro que grandes empresas poluem muito mais, e por motivos diferentes, mas temos que nos sentir responsáveis também.
"Cadê saci? Caboclo D'água?Minério de ferro na nossa água!Eles matam rios e jorram a praga,Cadê o canto de Iara?"


Agora vamos para um assunto muito importante. Kuma França fala sobre como a polícia e os "cidadãos de bem" agem para matar a negritude. Na mão de um homem negro, até copo vira arma, vira fuzil, vira bazuca. Uma mulher preta e pobre nunca pode ter direito ao aborto seguro, mas uma mulher rica e branca, pode abortar confortavelmente em grandes hospitais e nunca vai ser condenada por isso. A injustiça tá em todos os lugares, a gente só precisa abrir os olhos pra isso.
"Natural confundir um caderno com um fuzilOh, Pátria armada BrasilQue se preocupa tanto com as crianças "abortadas"esquecendo das nascidas, abandonadas"


Leandro Zerê é o grande amor da minha vida. Eu já vi ele recitando a poesia OGUM várias vezes e me emocionei lendo ela. E quero falar aqui sobre a experiência linda que é você ler uma poesia com a voz da pessoa recitando na sua cabeça, é totalmente diferente de apenas ler. Favela é resistência, muita coisa incrível sai daqui, e a gente, enquanto pessoas pretas, temos que estudar e trabalhar mesmo, buscar novos horizontes, dar o troco de tudo que a gente passou e continua passando.
"Fogo na Casa Grande! Traz o Sinhô pro tronco!Pois só assim vão entender que Favela não é Senzala!FAVELA É QUILOMBO!"


Ojû trás novamente a revolta por ver preto morrendo todos os dias. E sempre importante lembrar que a cada 23 minutos morre um jovem negro. Não importa o que esteja acontecendo politicamente no Brasil, e não importa muito a sua situação econômica, se você for preto, seu sofrimento sempre vai ser o triplo. A culpa de tudo vai cair em você. E se você for de religião afro-brasileira, ainda vão ter a cara de pau de dizer que são seus demônios que estão fazendo mal ao Brasil, e que é por causa disso que negros morrem mais. E sim, já ouvi isso. Tem gente que é doente.
"Nem sempre o corretivo é justo...Nem sempre a borracha apaga...Isso não acaba.Acho que você já sabe quem paga"


Rafael Moyses trás a discussão sobre loucura e sanidade. Muita gente acha loucura preto, pobre e favelado achar que vai mudar a estrutura do país, mas essas mesmas pessoas tão sendo caladas todos os dias, vendo pretos vencerem e passarem por cima de muito racismo. E claro, a gente ainda tem que melhorar muito, alguns pretos vencerem não significa que todos venceram, pra um subir, 100 morrem. Mas fico feliz em saber que a nossa loucura em resistir têm dado frutos, mesmo que ainda sejam poucos.
"A sanidade decapita o homemSofrida letra em negra tintaFlorida voz em boca desnutrida"


Rômulo Marcolino fala sobre o medo de não voltar pra casa, que falei anteriormente. O medo não vem somente da pessoa preta que tá na rua, mas também das mães que ficam em casa esperando seus filhos chegarem. Dos companheiros que ficam em casa, dos filhos. Infelizmente ser racializado no Brasil, causa medo. A nossa existência incomoda, e por isso, a cada 23 minutos morre um jovem negro.
"...quase todas as mães dormem, aguardando ouvir sinais dos filhos chegarem bem em casa. Por isso faço um barulho com as chaves e nas panelas, mamãe responde com um tossido"


Tarciso Manfreatti trás referências literárias! Claro, todos trazem muitas referências e em muitos poemas e contos isso fica claro, mas quero citar aqui por que é sobre Macunaíma, um livro que eu quero muito ler, e devo dizer que depois de ler isso em Ancestralidades, isso aumentou minha vontade. E aproveitando o assunto, o livro é ótimo pra pegar referências, e então se você gosta da cultura hip-hop, Ancestralidades é um ótimo livro pra ler.
"É como se eu fosse Macunaíma entrando no rio, aquelas roupas lavavam meu 'pretume'"


Thiago Amepreta fala sobre como tudo que vem de preto não é bem aceito socialmente. Poesia de branco, que escreveu sentado em sua varanda, em sua belíssima cobertura que fica no centro da cidade é algo belo, arte contemporânea. Então por que a poesia de preto, escrita no barro, num canto da favela, não é vista da mesma forma? Por isso a gente que é preto tem que consumir muita coisa preta MESMO! É nós por nós, e a gente só vai pra frente se rolar apoio.
"eu (negra) poesiatu (negra) poesiaele (negra) poesianós (negras) poesiasvós (negras) poesiaseles (negam) poesia"


Tônio Caetano escreve de forma tão doce e violenta ao mesmo tempo. O tema do conto em si é violento, é aquela coisa que rasga coração mesmo, mas ao mesmo tempo, a doçura e a leveza que as palavras trazem é surreal. O trecho abaixo fala de violência, mas olhem como é bonito de ler, aquele tipo de frase que a gente leva pra vida toda.
"Pegou meu menino pelos encaracolados como se eu não estivesse ali, como se eu não tivesse pés de cruzar mundo, braços de manter casa em pé"


Ygor Peniche fecha falando sobre uma coisa que já vem sendo estudada há décadas, mas que muitas pessoas ainda negam: capitalismo não está se importando com pessoas, se importa com o dinheiro dessas pessoas. Então se a forma de ganhar dinheiro for te divertindo, te fazendo ter mais acesso à cultura, ou te entupindo de remédios que funcionam menos que placebo, tanto faz. Capitalismo não se importa com sua vida, se importa com a quantidade de dinheiro que você gasta ou investe nela. Apenas isso.
"No capitalismo, a escola não forma pessoas - apenas profissionais"

Fica aqui a recomendação. Leiam Ancestralidades. Leiam gente preta.

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