quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Resenha: Indigesto de Flávio Karras




Título: Indigesto
Autor: Flávio Karras
Editora: Publicação Independente 
Ano de publicação no Brasil: 2018
Número de páginas: 185
Onde encontrar: Amazon / Skoob
Nota: 5/5



A primeira resenha do Mês do Horror 2018. O Mês do Horror foi criado pela Tatiana Feltrin. Todas as resenhas de outubro, exceto a do dia 11, serão temáticas de horror e terror. A resenha é grande pois possui um parágrafo para cada um dos contos + comentários no fim. Aproveitem.

Indigesto é um livro composto por 13 contos de horror, tendo como temática o ato de engolir. Alguns contos são maiores e outros menores, então o ritmo de cada um deles é diferente, mas no geral, são contos rápidos de serem lidos. Vou falar sobre o enredo de cada conto, sem spoilers, e na parte final falo sobre a escrita do autor e minhas opiniões. Para começar quero deixar claro que terror é o que te assusta ou te enoja, horror é o que te faz ter medo.

O primeiro conto do livro é Asa de Barata. Um homem tem TOC com limpeza, a sua cada precisa estar sempre 100% limpa. Ele não recebe visitas, não tem animais de estimação e nem filhos pois sabe que com isso em casa não seria possível mantê-la sempre limpa. Sua esposa já é acostumada ao jeito dele, então acaba não ligando, apesar de eles gastarem uma quantia bem alta apenas com produtos de limpeza cada vez mais fortes. A esposa o convence a receberem a família dela para uma visita, e depois de muita conversa ele acaba cedendo. Ele prepara várias toalhas e sabonetes para que as visitas possam estar sempre limpas, mas ele mesmo as utiliza. Quando os parentes da esposa chegam, ele vê uma asa de barata no quintal, tira ela dali com as mãos e acaba ficando vários minutos lavando-as por causa do TOC. Depois desse momento ele fica paranoico, pensando que a barata vai voltar para matá-lo, e enquanto os parentes da esposa comem, felizes, ele apenas consegue pensar em como será a vingança da barata.

Depois temos Miau, um conto narrado por um gato. No início é narrado em terceira pessoa, e o narrador não é um personagem, é apenas um observador. Uma senhora é encontrada morta já com partes do corpo faltando. Depois passamos ao gato narrador e personagem principal. Ele está conversando com outros gatos e revela que foi ele quem matou a senhora. Matou-a de susto, e depois comeu partes da carne dela. Como se fosse uma bola de pelos, ele coloca para fora um olho e pede que algum dos outros gatos coma. A partir daí a turma de gatos começa a planejar vários assassinatos no prédio para poder comer a carne dos humanos.

Onde está o horror? narra a difícil noite de um autor de livros de horror que precisa escrever uma boa história logo. Ele acaba tendo um bloqueio, acha que todas as ideias que está tendo são bobas demais. Seu namorado abre uma garrafa de rum, o autor diz que precisa dela e sai. A passagem de tempo no conto é marcado pela quantidade de mls que ainda restam na garrafa. Começa com 750ml e vai até zero. Para tentar achar sua inspiração, entre outras coisas, o autor rouba um cadáver do cemitério, e como já está bêbado, começa a tratar o esqueleto como sua namorada.

O conto Hora do Cafezinho é um dos mais reais, na minha opinião. Um funcionário com fobia social sabe que todos os dias, na hora do café, vai ser obrigado a conversar com as pessoas, ou ao menos escutá-las falando, coisa que ele odeia. Neste dia em específico, é aniversário de algum funcionário, o que faz com que o horror e estresse do personagem principal vá aumentando cada vez mais. Ele vai traçando planos mentais de matar todos os outros funcionários e sair dali o mais rápido possível, enquanto todos estão felizes comendo o bolo.

Comida Orgânica é o conto que mais me impactou e me marcou. Neste conto os humanos tidos como irracionais, são criados como gado ou como animais de estimação, e são os animais que criam esses humanos. Os animais são diversos, desde jacarés até leões. Um jacaré é funcionário de uma empresa que faz com que as humanas fiquem grávidas a todo momento para produzirem leite, tiram suas crias e as matam para fazer carne. É melhor que os partos sejam normais, já que há menos risco de a mãe morrer e eles perderem sua produção, mas os últimos partos têm sido cesárea. O jacaré acaba ficando incomodado depois de anos trabalhando ali, diz que não é certo fazer isso com os humanos, e acaba montando uma fazenda orgânica, onde segundo ele os humanos são tratados de uma forma que os fazem bem, mas não é bem assim.

Em meio aos contos em texto corrido há um poema, A triste sina do homem embaralhado, que conta a história de um homem que nasceu com o corpo inteiro fora do lugar. Ele cheira pelo ouvido, respira pelo ânus e tudo no corpo dele é assim, com as funções embaralhadas.

Temos o conto O brigadeiro, em que os personagens principais são os ingredientes que nós colocamos no brigadeiro, e todos tem sentimentos e falam. Os personagens são Achocolatada, Margarina e Farinha. Para eles, o ato de serem misturados um no outro é sexo. E esse conto chega a ter um toquezinho erótico, já que para o brigadeiro ser formado, é preciso que o preparador mexa bastante os ingredientes até ficarem homogêneos. Só podem participar desse sexo os ingredientes que forem convidados.

Provavelmente o conto mais repugnante do livro é Os dois lados da mesa. Um mendigo, que deve ter perto de cinquenta anos, vai tomar café no lugar de costume, de graça. Chegando lá ele descobre que o pão que ganhava agora passa a ser apenas meio, a prefeitura precisa cortar gastos. Depois a prefeitura vai tomando várias medidas horrorosas, desumanas. A primeira é fazer com que todos os mendigos virem números e passem a ser conhecidos como "números", depois começa a dar ração nutritiva, que provoca diarreia. Como solução, é implantada uma política de dar banho e tosa nos "números" periodicamente, já que eles acabam ficando fedidos por causa da diarreia. Não vou dizer quais são outras medidas, mas a final é tão repugnante que provavelmente pessoas sensíveis vão passar mal lendo. E veja que a prefeitura poderia apenas ter voltado ao pão com manteiga e café, mas continuaram dando a ração, e por causa disso tiveram que ir implantando mais e mais medidas desumanas.

Sem açúcar, por favor conta história de um adolescente obeso. Ele não tem problemas com o peso, ou pelo menos diz não ter. Ele gosta de games, fica o dia inteiro no computador jogando um jogo de RPG estratégico e não liga para nada. Um dia, indo à doceria que sempre frequenta, encontra uma garota linda e resolve que para conquistá-la ele precisa emagrecer. Mas ele precisa disso com urgência, precisa emagrecer mais de 10kgs em menos de uma semana. Para acelerar o processo ele compra remédios pela internet, toma duas pílulas de cada um, mas acaba não se importando muito com os efeitos colaterais. O que acontece é que ele começa a alucinar, a imaginar que a vida é o RPG que estava jogando e começa a literalmente matar todos que pareçam ser inimigos de formas horríveis.

Viver de sol narra a história de Margarida. Ela é auxiliar da cozinha de um programa matinal, onde uma apresentadora conversa com um fantoche de pássaro. Soa familiar? Sempre que a apresentadora erra ela acaba colocando a culpa em Margarida, e como é ao vivo, os telespectadores acham que realmente Margarida é a culpada, o que faz com que ela seja demitida. Depois disso ela começa a ficar estranha, passa a agir como uma flor, se alimentando apenas da energia do sol, mas como ela é humana, vai definhando.

Agora o que eu não gostei tanto, Rebobinando. É bem curto. Fala sobre relacionamento abusivo, mas fala de uma forma tão rasa que não consegui gostar. A mulher, para se vingar, coloca sangue de rato nas comidas com molho, mas em um dia ela acaba deixando o marido ver o rato. Acho que não gostei tanto por que a mulher continua com o marido depois de tudo. Coisa que acontece muito, por vário motivos, mas que sabemos que não é o recomendado. E o título dá a ideia de que isso acontece sempre.




























Promessa. Uma família linda e grande, mas descobrem que o filho mais novo tem câncer. A família é toda muito religiosa e ativa na igreja, mas uma das filhas é ateia. Então enquanto todos rezam, ela apenas sofre e se pergunta por que as pessoas acreditam que algum deus irá salvar seu irmão. Um dia, em uma festa da igreja, uma moça a pergunta qual promessa ela fez a deus para que o irmão dela fique bem, e como ela não tinha preparado nada sobre isso, diz que não irá mais comer chocolate. A partir daí tudo começa a ficar muito estranho, todas as pessoas começam a passar mal, menos ela, e o motivo é bobo, e ao mesmo tempo sobrenatural.

E agora um dos mais bizarros, o melhor fechamento possível. Descomendo Alice. Um homem marca um encontro com uma mulher que conheceu em apps de namoro. A mulher não aparece, então ele começa a flertar com a garçonete. O flerte dá certo e os dois saem. Ele coloca sonífero na água dela, a leva para casa e a coloca em uma mesa de metal. Ele é canibal. Vai comer ela, e vai arrancando parte por parte do corpo dela para guardar e manter a carne conservada por uma semana, que é o tempo que ele leva comendo um corpo humano feminino padrão. Mas uma hora a comida acaba...


Agora vou falar sobre minhas opiniões sobre os contos. Gostei bastante do primeiro, com certeza é uma boa introdução. Gosto da forma como o livro todo foi escrito, por que cada conto brinca com alguma possível fobia do leitor. Muitas pessoas têm fobia de barata, outras pessoas têm nojo, e ler uma cena em que uma pessoa engole a barata pode causar desconforto, o que é ótimo em livros de horror/terror. Eu não tenho medo ou nojo de baratas, essa é uma parte boa em ser bióloga (em formação), raramente tenho medo real de algum bicho. Gostei bastante do final, por que é o mais impactante.

Sobre Miau, só tenho elogios. Aqui temos um felino como personagem principal e narrador da história, o que torna tudo mais legal, por que nos leva a pensar de maneira diferente. Meus sentimentos lendo Miau e Descomendo Alice foram muito diferentes, apesar de os dois contos serem sobre humanos sendo comidos. Isso é estranho, mas é verdade. Quando vemos um animal irracional comendo algum humano, chamamos isso de instinto de caça, mas se vemos um humano comendo outro humano achamos repugnante, asqueroso, um crime.

Em Miau há várias referências literárias. Os gatos se chamam Poe, Dickens, Magdalena, Alencar e Hércules, que é um cachorro, apesar de o gato principal apenas se chamar Rosado. E em outros contos do livro também vemos várias referências de personagens da cultura, principalmente estadunidense e inglesa.

Onde está o horror? é mais um conto que mexe com o corpo humano de certa forma, já que o personagem principal do conto rouba um cadáver. No geral, os contos falam muito sobre violação dos corpos humanos, podemos perceber isso em todos eles, seja com uma barata entrando na boca de um homem, pessoas se comendo, pessoas sendo assassinadas, ou pessoas mortas sendo levadas. O conto que menos mostra isso, ou que talvez mostre isso de uma forma mais amena, é Hora do cafezinho, pois, apesar de ter uma briga, não há invasão de corpos realmente.

Os dois lados da mesa e Sem açúcar, por favor são dois contos que me marcaram muito pelo nível de loucura envolvido ali. No primeiro, os sem teto vão sendo reduzidos até virarem lixo, serem tratados e vistos como lixo, de uma forma grotesca e desumana. No segundo, a obsessão por algo leva um adolescente a fazer coisas horríveis.

O conto que realmente mais me marcou foi Comida Orgânica, por que além de mostrar todo o horror que é ver humanos sendo vendidos, mortos e sendo abatidos, nos leva a fazer uma reflexão mais profunda sobre a carne que comemos. Não tem como termos certeza de que os animais gostam de ficar nas fazendas mais calmas que se dizem ser corretas, muito menos que eles não sofrem naqueles lugares, muito menos que o horror vivido por aqueles animais é menor do que os que são abatidos de forma mais bruta ou com o preparo diferente para o abate. É como pensar que se alguém mostrar que você será morto em uma hora, mas te deixar comer antes disso, você vai morrer super feliz. Além disso, muitos dos animais têm filhotes e se preocupam com eles, e sabendo que vão morrer, sabem também que os filhotes ficarão sem seus cuidados. A indústria de carnes é cruel.

Não sou vegetariana, e confesso que tenho comido bastante carne, mas também sei que quando eu não vejo de onde veio a carne, eu sofro menos pensando nisso. Apesar de tudo, creio que o importante é nos conscientizamos sobre todo o processo pelo qual a carne passa até chegar na nossa mesa, e ver se conseguiremos dormir tranquilos sabendo que estamos fazendo crescer um mercado de crueldade. Infelizmente ou felizmente, eu sou uma das pessoas que na maioria dos dias consegue dormir plena e feliz, mesmo sabendo que comi uma vida.

Eu gostei muito da escrita do autor por que é nua e crua. Também gosto de escritas bem detalhadas, mas acho que para essas histórias, uma escrita com muito detalhes poderia deixar elas estranhas ou alongadas demais. A maioria dos contos são escritos em primeira pessoa, o que torna tudo mais divertido e horrível de ser lido, pois nós lemos o terror vivido pelos personagens, fazendo com que tudo se torne mais palpável, mais real.

Recomendo o livro para todos os que gostam de desafios, que gostam de livros que te causem sentimentos adversos e/ou estranhos, e principalmente para os que querem ler algum livro que seja tão forte que te cause mal estar físico. Também recomendo aos que gostam de contos, pois assim você pode ler uma história por dia, com começo, meio e fim. Geralmente livros de contos não exigem tanto do leitor, justamente por serem histórias mais curtas, então se você procura por uma leitura assim, fica a super fica de leitura.

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