quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Sobre Dear White People



Aviso desde já que esse post contém spoilers sobre o primeiro e o quinto episódio da série. Apenas sobre os dois.


Cara Gente Branca foi lançada na Netflix no meio desse ano, há também um filme de 2014 que tem o mesmo nome, e também fala sobre a negritude, porém mistura o drama com comédia. Eu amei a série justamente por ser real, por ser sim um drama, mas um drama que nós, pretos, vivemos diariamente, e que muitas vezes os brancos nunca viverão.

Samantha White é negra de pele clara, e possui um programa na rádio de sua faculdade. Como em quase todas as faculdades ao redor do mundo, os negros são minoria e sofrem com o racismo todos os dias. Samantha fala isso em seu programa chamado Dear White People. Já no primeiro episódio um homem branco organiza uma festa de black face. Para os que ainda vivem na idade da pedra, black face é uma prática onde pessoas brancas se pintam de preto para satirizar os pretos usando racismo, como fazer personagens, negros, que são todos pobres, que falam errado, que são empregadas domésticas, dando a entender que os pretoss não tem estudo, não sabem falar e não podem alcançar posições altas na sociedade. Era algo bem comum à alguns séculos, e como o preto não tinha voz, era algo considerado normal.

Quando a voz do preto finalmente passou a ser ouvida, aprendemos que isso é racismo, que o preto não se sente representado, que aquilo ofende e é errado, porém, ainda hoje, 2017, século 21, isso continua acontecendo. Pois bem, alguém avisa Samantha sobre a festa, ela filma tudo, os pretos da faculdade chegam quebrando tudo. A polícia é chamada e todos são mandados para suas casas.

Uma coisa que me chamou muito atenção, é que quando é descoberto que Sam, uma mulher preta, líder do movimento dos negros da faculdade, está saindo com um homem branco, as pessoas começam a tratá-la diferente, simplesmente por ele ser branco. Muitas pessoas podem entender isso como uma forma de racismo, não aceitar que ela namore um branco, mas vejamos. Fomos oprimidos por brancos desde sempre, fomos escravizados, há apenas algumas gerações nossas famílias eram torturadas, e ainda hoje somos torturados não somente com agressões físicas, mas com racismo. Então de repente você, um jovem preto, vê que a líder do movimento, que sempre levantou a bandeira de ficarmos todos juntos pois unidos somos mais fortes, está namorando um homem branco. Entendo a revolta, porém como sou da paz, acho sim que eles exageraram quando começaram a olhá-lha como se ela tivesse matado alguém.

É uma ação natural querer sair de perto de quem nos oprime, é a natureza, real. Quando um cachorro te morde forte e machuca, é normal você não querer chegar perto dele novamente, e também é normal que você não queira chegar perto de outros cachorros novamente. Os brancos nos machucaram, então quando nos fechamos em um círculo onde há somente pessoas pretas, não entenda como racismo, não entenda que não gostamos de você, apenas estamos nos protegendo de quem nos machucou, de quem nos tirou tantas coisas, e continua tirando, e muitas vezes não conseguimos fazer nada sobre isso.

Agora falando sobre o quinto episódio. Acontece uma festa, os pretos da faculdade vão, afinal, são pessoas, e vão à festas como quaisquer outras, e nessa festa estão ouvindo uma música que diz a palavra "negro, nigger,niga". PRESTE MUITA ATENÇÃO NISSO! Essas palavras, sendo as duas últimas variações da primeira, não devem ser ditas se você não for preto também. Sim. Quem é do grupo pode usar à vontade, se você não é, senta e chora. Isso é algo bem forte nos Estados Unidos, e chamar alguém assim é crime racial e pode levar à prisão.

Vou explicar melhor. Os brancos dominaram os pretos, além da escravidão, eles se achavam no direito de dar nome à raça, então chamaram de "negro". Quando os pretos começaram a se levantar, a ter a voz ouvida, gritaram que eles seriam chamados de "black", apenas, pois eles é quem iriam decidir como eles seriam chamados. Então chamar alguém de "negro" nos Estados Unidos, é proibido se você não for negro também. E atenção, muitas vezes, quem é considerado preto aqui, não é considerado preto lá, tenha cuidado.

Voltando ao episódio. Reggie, que também é do movimento negro da faculdade, ouve um branco dizendo aquela palavra e pede para ele não dizê-la novamente, o menino se sente ofendido com isso (??) e diz que ele não precisa parar de falar aquilo por que ele está apenas cantando a música. Começa uma briga, primeiro com palavras e depois com agressão. Um policial chega, separa os meninos e  pede a identidade do Reggie. Reggie pergunta se ele também vai pedir a identidade do homem branco, mas o policial, em resposta, aponta uma arma para Reggie. Todos os pretos saem dali chorando, com medo, pois até dentro do campus, onde eles deveriam ter segurança, eles são obrigados a ver armas apontadas para seus amigos apenas por causa da cor da pele.

Esse foi o episódio que mais me marcou. Por quê? Por que eu me vi ali. Eu sempre morei em favelas, a maioria dos meus vizinhos eram negros, a maioria sofria preconceito publicamente. Desde sempre eu via os adultos chamando os meus coleguinhas mais escuros de macacos, eu não gostava, nem eles, mas éramos crianças, não tínhamos voz. Eu cresci vendo carros da polícia todos os dias, ambulâncias toda semana, e quase todas as pessoas que vi morrendo eram negras, e acreditem ou não, alguns foram sim mortos pela polícia, sem motivo, apenas por serem pretos.

Se você for preto, a chance de ser parado pela polícia e eles te revistarem procurando drogas é bem maior do que se você for branco. Meu irmão, preto, tem medo de ser parado pela polícia quando estiver voltando da escola, enquanto seu amigo branco nunca teve medo disso. Eu vivi aquela cena, eu não vi a arma apontada para o Reggie, eu vi ela na minha cabeça. Eu vi o policial me dizendo que eu não deveria estar na rua àquela hora se não quisesse ser presa, ou que eu estava fazendo algo errado simplesmente por ser mulher, preta e estar na rua após a meia-noite. Eu vi o policial me dizendo que eu seria presa sem motivo algum, apenas por causa da minha cor. Eu vi o policial dizendo que a minha gente não presta. Eu vi o policial me dizendo que meu futuro ia ser me casar com um bandido, ou quem sabe, participar dos crimes. Eu vi o policial dizendo que, por ser preta, eu iria acabar na cadeia ou quem sabe tendo uma overdose. Eu vi isso tudo. Eu chorei. Eu sou o Reggie, meu irmão é o Reggie, muitos dos meninos do meu bairro são, e ver isso em uma série me chocou, me emocionou, me deixou triste, mas também me deixou feliz, com a esperança de que agora que isso foi mostrado, talvez as pessoas comessem a enxergar isso na sociedade.

Sabe, os pretos não escolhem o tráfico, não escolhem o crime, pois não temos opções, não temos escolhas. Nunca nos incentivaram a ler, a escrever, a sermos boas pessoas, a gostarmos de arte. Desde cedo nós vimos nossos pais se matando de trabalhar, nosso sonho é poder retribuir, precisamos de dinheiro para mudar a situação em que vivemos. Não temos as mesmas chances que os brancos no mercado de trabalho, nunca tivemos o incentivo de ir trabalhar em grandes empresas, pois nunca recebemos o incentivo de estudar. Quando você não tem dinheiro, quando você vê seus pais trabalhando 12 horas por dia e tendo que contar as moedinhas para conseguir pagar todas as contas, quando você vê a sua família passando fome, você faz tudo! Tudo, mesmo. Se esse "tudo" incluir roubar ou matar alguém, você faz, você não tem escolha, não te deram escolhas!

Existem mais pretos do que brancos nas favelas por que quando a escravidão foi abolida, não ajudaram os pretos, não os incentivaram, então eles construíram casinhas pequenas, muitas vezes umas em cima das outras, originando as favelas, e o fato de hoje, quase um século e meio depois, isso continua sendo uma realidade. Ainda não saímos dos quilombos, estamos presos lá e não temos nenhum incentivo para sair. Lá fora estão os brancos, os senhores, aqueles que vão nos chicotear, então talvez seja melhor ficarmos aqui mesmo. E o número de pretos no crime é alto pelo que citei no parágrafo anterior. Não temos escolha, não nos deram escolha. Um ou outro consegue burlar o sistema e se destacar, consegue se formar em alguma faculdade, consegue ter uma carreira consolidada, mas é como diz a letra de Eu Queria Mudar "preto rico: um entre cem".


"Esse mundo me ensinou a roubar, esse mundo me ensinou a matar
Esse mundo me ensinou a viver de um jeito que não dá pra mudar
Eu queria poder viver bem, eu queria um dia ser alguém
Infelizmente o que se quer não se tem
Preto rico um entre cem

Só sei fazer o errado, eu aprendi a ser assim
Quem vai por esse caminho logo encontra o fim
Pobre sem profissão nada consta, custa um montão
Fecharam as portas pra mim, roubar é minha profissão
Queria até ter um carro tunado estilo Sport
Pra conseguir um daqueles só sendo um patrão dos fortes
Ou conseguir um canal numa agência bancária
Ou sequestrar um playboy, filho de uma mãe milionária
Pensar honesto não dá
Nunca deu e nunca dará
Se quem governa o país também aprendeu a roubar
Eu roubo a mão armada, eles roubam no caô
Me chamam de bandidão, eu chamo eles de doutor"

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