quarta-feira, 14 de março de 2018
Existe dignidade no corpo morto?
O primeiro post do biologando é sobre um tema muito importante na ética da prática de vários cursos na área de Ciências Biológicas. Uma questão ética, e sobretudo, cultural, que vai ser tratada de formas diferentes em diferentes países. Esse post está aberto à discussão, desde que todas as opiniões sejam respeitadas!
Existe dignidade no corpo morto? Muitos dirão que não, afinal, a pessoa já morreu, não sente mais nada, então se o corpo dela foi violado (por abuso sexual ou por cortes não autorizados por ela e/ou pela família), ou se for jogado num rio ou numa cova, ela não vai sentir, não vai saber, portanto, não vai sofrer ou se indignar com o que está acontecendo com ela.
Muitos dirão que sim por que em algum momento aquele corpo sem vida teve vida. Seja por alguns minutos ou por muitas décadas, aquele ser viveu, respirou, se divertiu, sentiu e teve uma vida normal, assim como você ou como a equipe que está encarregada de cuidar do corpo. Muitos dirão que sim pois o ser humano precisa respeitado, e ele estar morto não muda a condição de ser humano. Ele não muda de espécie depois de morto, portanto merece o mesmo tratamento, como ser humano, que tinha antes de morrer.
E muitos dirão que sim pois aquele corpo morto tem uma família, e em respeito à essa família não devemos violar seu corpo. Esse pensamento tem um furo um pouco problemático, já que pessoas que são dadas mortas como indigente não tem, naquele momento, uma família que exija esse respeito. O que nos leva à respeitar o corpo é saber que em algum lugar esse corpo tem uma família, ou a pressão ética e moral de saber quem são os familiares daquele corpo? Tratamos um corpo morto com dignidade por que somos cobrados, ou por que repudiamos qualquer tipo de violação ao corpo morto?
Se você trabalha em alguma área em que precisa lidar diretamente com corpos, acreditando ou não que ele merece respeito e ser tratado dignamente, você precisa tratar aquele corpo com o máximo de respeito, já que qualquer violação no corpo pode, e deve, ser punida. Quando você trabalha com seres humanos, vivos ou mortos, precisa tratar todos com dignidade, independente de quem é, ou de como o corpo é.
Dizer que o corpo morto não merece ser tratado dignamente é dizer que tudo bem pegarem os órgãos e venderem no mercado negro, afinal, a pessoa não está sentindo e nem ficará sabendo qual será o destino daqueles órgãos. Também é dizer que tudo bem violar sexualmente, ou seja, praticar necrofilia. É dizer que tudo bem mutilar o corpo por simples prazer.
Agora vamos entrar em questões cada vez mais específicas. Já que o corpo morto, na teoria, deve ser tratado com respeito, tirar fotos de pessoas mortas é algo correto? Isso nos traz de volta à questão da família daquele ser humano que morreu. Quando não tiramos a fotos é por que nós não achamos correto, ou por respeito à família? E quando tiramos, e principalmente, quando mostramos aquela foto às pessoas, estamos tendo algum respeito com a família?
Os únicos autorizados a fotografar cadáveres são policiais científicos, ou policias peritos. Essas fotos são tiradas com o objetivo de poder estudar os detalhes da morte, claro, quando não foi por morte natural. Estudar e descobrir a causa da morte diretamente no próprio corpo poderia demorar muitos dias, e além de o corpo não aguentar muitas horas antes de começar a decomposição, seria desrespeito à família pedir que eles "adiem" o velório e enterro daquele corpo. Por isso, nesse caso, as fotos são necessárias e não devem ser divulgadas, a menos que seja algo de uma investigação muito grande, como por exemplo, um serial killer que coloca uma marca específica em suas vítimas. De toda maneira, o ato de fotografar e liberar a foto ou não, deve ser decidido pela polícia.
Agora vamos à parte que interessa aos universitários dos cursos da área de Ciências Biológicas. É correto ter cadáveres nos laboratórios das universidades? Muitos vão dizer que sim, afinal, nada melhor do que estudar diretamente no corpo. E claro, muitos dirão que não, já que muitos estudos violariam o corpo, não no sentido sexual, mas no sentido de cortes.
Corpos em exposições e em universidades são de pessoas que morreram como indigentes ou que a própria família autorizou o estudo. No primeiro caso pode haver opiniões divergentes, já que não houve permissão por parte de ninguém da família ou da própria pessoa, mas no segundo caso, é quase sempre tratado como algo correto, já que houve a autorização.
Algumas universidades federais do Brasil estão abrindo cadastros para que os cidadãos possam se cadastrar e "reservar" seus corpos aos estudos científicos quando eles morrerem, o que significa que a própria pessoa está permitindo que, depois de morta, certos procedimentos sejam feitos em seu corpo.
Devemos nos lembrar que quando um corpo é doado por familiares ou quando a própria pessoa se cadastra, há vários documentos a serem preenchidos, e a família ou a própria pessoa pode detalhar quais procedimentos ela não quer que façam com seu corpo. Por exemplo, uma pessoa pode pedir que não lhe tirem a cabeça (ou seja, que o corpo seja estudado como um todo), ou pode pedir que apenas seus órgãos internos sejam estudados, exigindo que ossos e pele não passem por estudos. Isso faz com que não haja violação da vontade da pessoa, o que faz com que os procedimentos autorizados não sejam de fato uma violação ao corpo, já que foi previamente permitido.
E quando cortes e estudos são previamente permitidos por familiares ou pela própria pessoa e esse corpo é estudado, há dignidade? A dignidade está em obedecer e respeitar a vontade de familiares e da própria pessoa, ou em cortar ou não o corpo? Se cortes são meios de violação, por que são permitidos depois que a pessoa mostra interesse em ter seu corpo estudado após a morte? A dignidade está em nós ou no corpo?
A pergunta "existe dignidade no corpo morto?" não tem uma resposta pronta. É certo que devemos tratar esse corpo de forma digna, mas isso se deve ao fato de que é crime violar o corpo, de respeitarmos a vontade da família, de o corpo ainda dever ser tratado como era antes de morrer, ou por que dentro de nós temos esse valor moral de que não devemos violá-lo?
As respostas vão mudar de acordo com o contexto social em que cada um cresceu. Em alguns países é comum os corpos serem doados para estudo sem um acordo prévio do que poderá ser feito ou não, em alguns países existe muita burocracia para doar um corpo. Assim como em alguns países é permitido ficar de luto por quase uma semana, como no Brasil, quando um familiar falece, em alguns países, como no México, é comum fazer festas e comemorar a "passagem" da pessoa. Eles não comemoram a morte, comemoram o tempo de vida que a pessoa teve e os bons momentos que ficaram, mas é comum saírem do enterro e darem festas. Nos Estados Unidos agências funerárias que fazem festas nos velórios estão se tornando famosas. Algum desses costumes de alguma forma viola a dignidade do corpo? Por que o corpo morto é tratado de formas tão diferentes sendo que é cobrado de todos que respeitem o corpo?
Se pergunte o que te faz não violar um corpo morto, até onde você iria se essa violação não fosse crime, e o motivo de as pessoas exigirem respeito ao corpo morto. Essas questões podem parecer confusas e difíceis de responder, por que realmente o são. As respostas vão mudar de acordo com a sociedade em que você viveu, com a sua visão de mundo, e até mesmo com o seu nível de escolaridade. Faça uma pesquisa e pergunte às pessoas se há dignidade no corpo morto, as respostas e motivos poderão fazer com que você entenda melhor as questões, ou até mesmo podem levantar novas questões nas quais você não tinha pensado anteriormente.
Imagine que a pessoa que você mais ama faleceu e você descobre que o corpo dela foi violado na agência funerária, qual seria a sua reação? Você teria essa reação simplesmente por que amava essa pessoa, ou teria essa mesma reação se fosse uma pessoa desconhecida? O que nos leva a respeitar ou não um corpo morto? Discuta essas questões com seus colegas de classe, trabalho e conhecidos.
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