Título: A Paixão Segundo GH
Autor: Clarice Lispector
Editora: Editora Rocco
Ano de publicação no Brasil: 1964
Número de páginas: 180
Nota: 4/5
A Paixão Segundo GH foi meu primeiro contato com Clarice, e um dos meus poucos contatos com fluxo de consciência. Resumindo bastante, GH narra um episódio em que, por estar sem uma empregada doméstica, ela foi limpar a casa, e decidiu começar justamente pelo quarto que a empregada ocupava. Ela se depara com um quarto extremamente sem graça, onde as únicas coisa que chamam a atenção são pinturas na parede com o contorno de corpos humanos, porém desproporcionais.
"Eu recuava dentro de mim até a parede onde eu me incrustava no desenho da mulher. Eu recuara até a medula de meus ossos, meu último reduto. Onde, na parede, eu estava tão nua que não fazia sombra."
GH começa a andar pelo quarto para avaliá-lo e resolve abrir o guarda-roupas, que está vazio, por exceção de uma barata no fundo. O que acontece é que GH tem pânico, fobia de baratas, e esse acontecimento vai levá-la a pensar sobre várias coisas em sua vida.
"Eu não quero as outras espécies! só quero as pessoas"
Não vou contar mais sobre o enredo, por que creio que muita parte da piração e das viagens malucas que GH faz dentro da própria cabeça são a graça do livro e o que o fazem valer a pena, já que o enredo em si é bem simples.
"Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, e sem sequer precisar me procurar"
Então o que acontece aqui, é que cada um dos mínimos eventos que acontecem levam a personagem a fazer reflexões bem sérias. Então do momento em que ela entra no quarto, até de fato ver a barata, se vão aí umas 60 páginas (pelo menos na edição que eu li). No início tudo me encantava, fiz inúmeras marcações nas 100 primeiras páginas do livro, estava achando tudo incrivelmente encantador, estava super imersa na história e achava tudo inovador.
Devo dizer que continuo achando a escrita da Clarice uma coisa incrível, inovadora e sei que dificilmente lerei algo tão belo quanto o que ela escreve. Ela consegue fazer o menor acontecimento do mundo virar algo incrível só pela forma como ela o descreve. Relendo minhas marcações no livro para colocar alguns trechos aqui eu me vejo novamente encantada com a escrita da Clarice, com a sensibilidade que ela tem ao escrever, e como tudo parece mágico, e ao mesmo tempo extremamente real nas palavras dela.
"A vida é tão contínua que nós a dividimos em etapas, e a uma delas chamamos de morte"
Eu me emocionei, de verdade, várias vezes ao longo das primeiras 100 páginas. Lia certas frases e precisava parar pra pensar sobre aquilo e sobre o quão real era o que ela estava falando. As reflexões que ela faz, pelo menos nas primeiras páginas, são muito aplicáveis à nossa vida, e me fez pensar mesmo sobre várias questões, sobre pessoas e sobre situações.
Durante as primeiras páginas, as reflexões, apesar de irem se distanciando do objeto que levou à reflexão, eram reflexões que de alguma forma faziam total sentido. A maioria usando metáforas para falar da vida, utilizando a barata como uma metáfora para quaisquer coisas que nos mete medo, ou nojo, ou aversão. E justamente por seres mais próximas do objeto, e mesmo assim serem coisas mais viajadas mesmo, mais místicas e existenciais. Só que algo que me fez não gostar tanto da leitura, foi o fato de que nas últimas 80 páginas, as reflexões começaram a ficar estranhas, pelo menos pra mim.
"E ia para essa loucura promissora. Mas meu medo não era o de quem estivesse indo para a loucura, e sim para uma verdade - meu medo era o de ter uma verdade que eu viesse a não querer, uma verdade infamante que me fizesse rastejar e ser do nível da barata. Meus primeiros contatos com as verdades sempre me difamaram"
Sabe quando você começa a stalkear um perfil, e vai entrando em vários outros e no final nem se lembra como foi parar ali? É mais ou menos isso que acontece, e isso me irritou bastante. Sei que por ser fluxo de consciência nem tudo terá uma linha cronológica perfeita e que alguns pensamentos serão mais aleatórios mesmo, mas eu simplesmente não conseguia ver a conexão da reflexão com o objeto que provocou a reflexão.
E aí, como eu já estava incomodada com isso, eu acabei ficando incomodada também com a demora para as coisas acontecerem. No início, ela ia contando o que estava acontecendo, ficava duas ou três páginas refletindo sobre, e depois já falava outro acontecimento. E sim, eram acontecimentos pequenos de cada vez, mas algo acontecia. E depois o que foi acontecendo é que cada vez mais ficamos imersos na mente da personagem e ela vai demorando mais e mais pra falar aconteceu, já que o livro narra um episódio de um passado bem próximo.
Como vocês viram, o enredo é bem simples. Depois que ela vê a barata, ela basicamente tem apenas umas três ações no máximo, e todo o resto são as divagações da personagem. E depois que começou essa parte que pra mim foi mais arrastada, eu estava achando tudo meio desnecessário, coisa pra encher linguiça mesmo. Sim, é tudo extremamente poético e bonito de ser lido, mas pra mim não fazia sentido com o contexto do livro e com o que estava acontecendo.
"Tudo se resumia ferozmente em nunca dar um primeiro grito - um primeiro grito desencadeia todos os outros, o primeiro grito ao nascer desencadeia uma vida, se eu gritasse acordaria milhares de seres gritantes que iniciariam pelos telhados um coro de gritos e horror. Se eu gritasse desencadearia a existência - a existência de quê? a existência do mundo. Com reverência eu temia a existência do mundo para mim"
O que aconteceu com essa leitura é que a partir da página 100, uma coisa me incomodou, e essa coisa me levou a outra incomodação e assim por diante. E o que aconteceu é que li as últimas páginas bem rápido apenas para terminar o livro logo e me ver livre dele.
Também há o fato de que eu já sabia qual seria o acontecimento final do livro, e chegou numa parte em que ele simplesmente não acontecia, e quando aconteceu foi uma coisa tão mixuruca em comparação ao que eu estava esperando pelo que as pessoas haviam me dito, então isso me deixo bem decepcionada. E sei que o fato de já saber qual seria o final, e estar muito ansiosa por ele afetou minha experiência, mas não tinha como eu simplesmente apagar o final da história da cabeça antes de começar a ler de fato, por que foi o fato de eu já saber o final que me fez querer ler o livro.
Reconheço que é um livro incrível, a escrita da Clarice é algo de outro mundo, emocionante, bonita, extremamente sensível e poética. O livro, como um todo, é bem construído, mas infelizmente eu achei muito enrolado em algumas partes, e achei as reflexões mais pro final too much, sabe? Desnecessárias. Mas, justamente por reconhecer o quão grandiosa é a obra, dei quatro estrelas pro livro.
Há algo muito bom no livro que é o fato de GH conversar com quem está lendo, ela se dirige ao leitor, pede nossa ajuda para atravessar a jornada que é relembrar o que havia acontecido naquele dia, e nos pede para segurar sua mão enquanto ela conta tudo. O que é fantástico!
"Por te falar eu te assustarei e te perderei? mas se eu não falar eu me perderei, e por me perder eu te perderia"
Recomendo muito que leiam, principalmente por que creio que será uma experiência diferente e incrível para todos. Recomendo para os que gostam de fluxo de consciência, lembrando que normalmente são livros com uma narrativa não cronológica e que não segue muito uma lógica, pois estamos literalmente acompanhando todos os pensamentos do personagem. Recomendo aos que gostam de poesia em prosa, por que tudo que ela escreve é poesia, dá vontade de fazer quadros e espalhar pela casa. E recomendo aos que querem uma leitura diferente.
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