sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Resenha: Raízes - Resistência Histórica































Título: Raízes
Autor: Varias; serão citadas ao longo da resenha.
Editora: Venas Abiertas
Ano de publicação no Brasil: 2018
Número de páginas: 180
Onde encontrar: Editora Venas Abiertas
Nota: 5/5


Raízes é uma coletânea de crônicas, contos, poemas e poesias escritas por mulheres pretas brasileiras. São 20 escritoras, que falam sobre negritude, sobre feminismo, política e o dia a dia da favela, já que todas são periféricas. As autoras estão dispostas no livro por ordem alfabética, então fica até mais fácil encontrá-las lá dentro.

A primeira é Aline Oliveira, que escreve três poemas que falam sobre o cabelo crespo; sobre a negritude dentro das religiões afro, citando os orixás e falando sobre a relação deles com ela; e ela fecha falando sobre a mulher brasileira, não apenas sobre o ponto de vista da mulher preta, mas também da índia e de todas as mulheres em geral, que sofrem e não são reconhecidas como deveriam.

"Que o machado de Xangô
esteja preparado pra pegar
um a um..."


Bruna Tamires escreve dois contos para essa coletânea. O primeiro deles "História sobre mulheres bêbadas" mexeu muito comigo. Eu simplesmente fiquei encantada com a escrita dela. Fala sobre os motivos que fazem com que as mulheres bebam, todos ligados à dor emocional e física, de uma forma tão real que chega a ser assustador. O segundo conto fala sobre um casal, que provavelmente não é mais um casal, mas uma das partes ainda quer que sejam, e revela a saudade que tem da "negrita".

"Mas a pinga, para todas aquelas pessoas que não sabem, faz sorrir, bater, chorar. Faz muita coisa. Potencializa as vontades de dentro."


Caroline Anice vem um conto e três poemas. No conto ela fala sobre uma menina preta que mesmo sendo nova é escravizada pelo racismo e pelo machismo, e sobre resistência. Ela também escreve um poema lindo de amor que eu amei, principalmente por ser relativamente parecido com um poema que eu escrevi (oi, preto). 

"Sabe, preto, explode dentro do peito
A convicção de quem vê o horizonte
Inteiramente nos olhos de alguém."


Dalva Maria escreve três contos, e provavelmente por ser mais velha, escreve o primeiro na perspectiva de uma mãe que está esperando o filho que foi preso injustamente sair da cadeia. Todos os contos falam sobre mãe, ou são mães falando. Destaquei o primeiro pois foi o que mais mexeu comigo, por falar de uma coisa tão real quanto a prisão e morte de pretos sem motivo algum, apenas por serem quem são.

"- É o que eu falo sempre, meu filho. Você sabe muito bem como preto e pobre é tratado nesse país."


Elânia Francisca escreve quatro poemas que dão um destaque maior ao movimento feminista, mas também fala sobre o nosso corpo preto ser símbolo de resistência, pois considerando que a cada 23 minutos morre um jovem preto, continuar vivo já é sinal da vitória. Ela fala bastante de misoginia e machismo, e o poema que eu mais gostei, chamado "Bate", fala sobre agressão à mulher, e é muito tocante.

"Bate mesmo, bate que pra homem não dá nada
Bate no peito e arranca a alma com o punho
Bate na gente e fica por isso mesmo"


Flor, Priscila escreve quatro poesias e uma crônica que eu interpretei como uma crítica ao lugar que é reservado às mulheres na sociedade machista, mas confesso que não consegui entender muito bem o que ela escreve, não apenas na crônica, mas em todo o resto. Porém gostei muito da última poesia, "Clube da Esquina", que fala sobre resistência.

"Notas manchadas com nosso sangue quente,
Escritos pelos falcoes que comem a gente."


Giovanna Heliodoro é uma escritora que quero destacar. É uma mulher preta trans, que escreve sobre o que é ser mulher dentro de uma sociedade que diz que apenas quem nasce com vagina é mulher, e quem nasce com pênis é homem. Ela escreve diários sobre isso, e ter acesso à eles é algo enriquecedor, pois como pessoas cis, podemos passar a compreender melhor o sofrimento e a luta das manas.

"Onde você não imagina ver corpos como o meu?"


Júlia Gomes escreve poemas e poesias, inclusive um deles é sobre a escrita. Existe um poema de amor, e os outros falam sobre resistência, sobre fazer uma revolução e faz críticas ao Estado e ao governo, e, vivendo um momento tão delicado e assustador na política, são versos mais que necessários. Minha preferida foi a última poesia, que fala sobre a dor de escrever uma realidade tão cruel.

"Eu queria que essa fosse
Só mais uma poesia.
E não a realidade
dos nossos dias."


Juliana Jesus, um dos meus orgulhos da vida. Para quem não reconhece pelo nome, ela fez um vídeo no Manos e Minas, falando sobre sua avó, Dona Josefa. Me lembro que algumas amigas me falaram que uma das poesias dela foi a mais tocante de todas que elas tiveram acesso no dia do lançamento oficial do livro em Belo Horizonte. Ela escreve uma carta à avó dela, que foi quem a criou, e é emocionante ler quando sabemos da história toda, que ela fala no vídeo do Manos e Minas. A poesia que encantou minhas amigas se chama "PIPA" e fala sobre os amigos que foram mortos. E ela também escreve uma poesia de amor preto muito linda.

"Mas em 2016 as ideias mudaram
E a lembrança agora é de um corpo
Sangrando no chão
Por que acabou de perder sua vida
...
O playboy se saiu mais rápido da cena
Os PM's chegaram e o Pipa SUBIU"


Juliana Lino tem um poema lindíssimo chamado "Com quantos tapas se faz uma mulher", que claramente fala sobre agressão física, mas também psicológica e sobre a pressão social. É algo bem impactante, desde o título até a última palavra. E ela também fala muito sobre revolução com o feminismo.

"Os tapas são constantes
e a luta também será!
Culpadas?
Jamais seremos!
Caladas?
Jamais ficaremos!
Mátria livre, venceremos!"
























Karine Bassi, organizadora do livro, mulher visionária e um amor de pessoa. Escreveu vários poemas para o livro, alguns bem poemas e outros longos, a maioria sobre amor, algo que eu amo, principalmente por não ser apenas puramente amor romântico, mas amor dentro da militância negra  e feminista. Os poemas citam nomes e termos muito importantes para o movimento negro, e isso sempre é bom, por agrega muito ao nosso vocabulário.

"Sim! Encontrei o meu amor
Na boca rebelde que grita"


Laura Oliveira escreve crônicas e contos, todos bem curtos, com no máximo uma página e meia, o que é ótimo, por que a leitura acaba sendo bem rápida, mesmo se tratando de temas profundos. Ela fala sobre um amor bonito, mas que não parece possível; sobre Thamara Selva e a paixão de mulher pra mulher de uma forma linda, e sobre "amor preto", incrível. É tudo muito bonito e poético, mesmo sendo em prosa. E fecha sua participação com uma crítica incrível à Samarco e à todas as outras culpadas pelo acidente em Mariana.

"Mais que rejeito, escorre sangue inocente de duas mãos"


Nágila Oliveira está na coletânea com apenas um conto, que parece ser um pouco autobiográfico, sobre a vida de uma menina, cheia de perrengues, enfatizando tudo que acontece por causa da origem da menina, e tudo que acontece apenas por ela ser mulher. Eu achei incrível ter escrito coisas fortes acontecendo com uma criança, pois assim a gente começa a pensar e perceber que tudo tem início desde os primeiros anos da nossa vida.

"Enfim compreendera o que a anciã de dreads me falara em sonho"


Negra Julie escreveu dois poemas e um conto para Raízes. O primeiro fala sobre uma data específica na vida dela, e é bem melancólico, o que o torna também bonito e é fácil de reconhecer naqueles sentimentos. O segundo é um conto sobre relacionamentos amorosos e o último é um poema, dedicado à uma mulher específica, que me pareceu ser sobre amizade.

"Vou parar tudo e ouvir de novo aquela nota
Vou esquecer o mundo enquanto tento guardar todas as cores
Vou fingir que parei o relógio para viver todas as minhas dores
Vou amar mais uma vez e esquecer os riscos"


Regiane Farias escreve poemas sobre resistência, e são incrivelmente lindos. É incrível ver que muitas delas escrevem sobre as mesmas coisas de formas tão únicas. Há também poemas sobre infância, com tom bem nostálgico e eu amei, por que quebrou um pouco do peso dos últimos escritos do livro. E eu acredito muito mesmo que além de escrever sobre negritude especificamente, a gente precisa escrever sobre tudo, por que sim, não tem como deixar de sermos mulheres negras, mas somos mais do que isso. Nós sentimos raiva, dor, felicidade, nostalgia, e gosto quando vejo meus pretos fazendo isso.

"Era a sua poesia
Sua mãe ao acordar bem cedo,
tranças n'ela se fazia
Se perdia em meio
ao tempo... Ao vento..."


Regiane Martins escreve poemas e poesias sobre suas vivências pessoais, que podem ou não ser um reflexo de algo que acontece com todas. Ela escreve muito sobre padrões e como os padrões, principalmente os de beleza, interferem na nossa vida e nos machucam muito também.

"Negra, crespa e não mais alisada
Mesmo assim não foi aceitada, foi tolerada
Vaga de emprego negada"


Silvana Rodrigues escreve sobre amor de várias perspectivas diferentes, todas, obviamente, com foco no amor preto. A escrita dela é muito gostosa, tudo flui de uma maneira muito boa e fica aquela sensação de que ela precisava ter pelo menos mais 10 páginas no livro.

"E as nuvens antes nos pés
agora sobem até a cabeça, saem pela boca
e chovem no peito"


Tayla Fernandes começa já falando sobre o fato de cabelo cacheado/crespo, nos últimos anos, ter sido considerado uma moda, sendo que na verdade ele sempre esteve aí, só que sob a pressão de ser alisado. Cabelo cacheado e crespo não é uma moda, é algo que nasce com a gente. Ela também escreve sobre amor romântico de uma forma suave, calma de uma forma muito gostosa de se ler. Me fez sentir que eu estava num lugar muito tranquilo, com um ventinho bom soprando no rosto.

"Porque a mulher negra
É ensinada desde criança como se comportar
É ensinada desde criança como se esbranquiçar"


Thabata Cristina começa já escrevendo sobre a solidão da mulher preta gorda, algo que deve ser dito e discutido. No geral, mulheres pretas já são sozinhas, não são vistas como boas opções para um relacionamento sério ou um casamento, imagine então quando essa mulher preta é gorda, bem fora dos padrões de beleza. Também escreve sobre resistência e afirma várias vezes que nosso corpo é nosso e só nós podemos mandar nele.

"Meu corpo é meu
É o sonho meu
Poder ser livre de verdade"


Zainne Lima já é conhecida de outros livros e para o Raízes ela escreveu dois contos incríveis sobre o dia a dia de uma mulher preta, que obviamente causa um reconhecimento. Mesmo que você não se reconheça em todas as palavras, apenas por ser mulher você consegue se reconhecer em alguns momentos e situações.

"Preste atenção que até seu salvador é negro. Não se imobilize diante do racismo"


Falando de um modo geral, amei o livro. Gostei de algumas autoras mais do que de outras, e gostei de alguns escritos mais que de outros, o que é normal. Me senti melhor representada nas palavras de algumas mulheres e isso fez com que eu gostasse mais de alguns. Sei que para pessoas brancas, principalmente homens, o que está escrito no livro talvez não tenha tanto impacto, mas recomendo para todas as pessoas, inclusive as brancas, por que ler isso tudo pode fazer você, pessoa branca, entende rum pouco melhor o que é racismo e como isso afeta as mulheres e tudo ao redor delas.

E para os pretos que lerem o livro, com certeza vai haver uma forte identificação com tudo que está escrito, em menor ou maior grau. Creio que pela resenha vocês conseguem sentir um pouco do gostinho do que está reunido no livro e que vocês foram tocados de alguma forma por algumas citações. Sei que principalmente as mulheres pretas vão amar esse livro, mas espero que todas as mulheres, de todas as cores, possam se ler e sentir representadas de alguma forma, e que todos os pretos também.

Força às mulheres, força aos pretos, força às mulheres pretas!


2 comentários:

  1. Olá sou a autora do conto Filha de Nanã. Obrigada pelas considerações sobre o meu texto, mas afirmo que o mesmo não é autobiográfico. Abraços! Literatura e Resistência que seguem!

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